Nas tramas do crack – Le Monde Diplomatique, março 2016

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NAS TRAMAS DO CRACK: ETNOGRAFIA DA ABJEÇÃO
Taniele Rui, Ed. Terceiro Nome

A abjeção, alteridade radical que não reconhece humanidade no outro, é central no livro de Taniele Rui. Sua pesquisa antropológica direciona o olhar para, no mínimo, três dimensões curiosas, que se entrecruzam para entender as tramas do crack: o chão, os cachimbos e os “noias”.

Sua observação dos caminhos percorridos chama atenção para as “coisas” relacionadas ao universo de consumo do crack. Restos de comida, insumos dos redutores de danos, pedaços de papel-alumínio, cachimbos… Tudo que aparentemente é sem importância demonstra o quebra-cabeça que monta a vida pulsante no encarado de maneira habitual apenas como exclusão.

A estratégia de produção de cachimbos proposta pelos redutores de danos leva às estratégias de autocuidado e à possibilidade de engajamento político, na gramática do direito a ter direitos. É por meio do olhar mais atento ao cachimbo que a antropóloga pode adentrar as miríades de intersecções de cuidados, repressões – muitas vezes contraditórias – e relações sociais em seu cenário de pesquisa.

Internamente ao grupo dos usuários de crack há a diferenciação entre os que utilizam lata e os que usam cachimbo. A lata é mais prejudicial ao usuário; sendo assim, o cachimbo demonstra o mínimo asseio do usuário. O prestígio dos cachimbos pessoais é tão elevado que os transformam em pessoas com nomes próprios. Já a corporalidade do noia o coloca numa condição de desumanização e o transforma em “coisa” e, portanto, define os contornos do que é entendido como humanidade.

Diante disso, essas questões suscitam tantas intervenções, envolvendo saúde, segurança pública, assistência social, pobreza, preconceitos, que se entrecruzam em complexas relações e colocam “o crack, seus usuários e seus espaços no centro da questão social brasileira contemporânea” (p.27). Dessa forma, esse é um dos temas acadêmicos e políticos mais importantes da atualidade e encontra no livro de Taniele Rui cuidadosa e original análise para compor o debate.

Aline Ramos Barbosa é Doutorando em Ciências Sociais na Unesp (PPGCS/FFC-Marília)

Leia aqui a resenha na íntegra

E veja aqui mais informações sobre o livro

Nas tramas do crack – G1 Campinas, 7 de junho de 2015

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Cenários de bairros de Campinas para uso de crack são temas de livro

Jardim Paranapanema e Vila Industrial foram estudados durante três anos. Antropóloga pesquisou programa de redução de danos (PRDs) para tese

A linha do trem no bairro Jardim Paranapanema e o prédio da Vila Industrial, ambos em Campinas (SP), são dois dos cenários de crack analisados no livro “Nas tramas do crack – etnografia da abjeção”. A antropóloga Taniele Rui acompanhou usuários desses locais para sua tese de doutorado, que acabou sendo publicada como livro.

A autora acompanhou entre 2008 e 2011 programas de redução de danos (PRDs) nessas áreas. Durante esse período, Taniele entrou em contato com histórias dos usuários e descreveu as dinâmicas dos consumidores, os meios de obtenção da substância e suas técnicas de utilização.

“Eu visitei mais de 15 locais de consumo e comércio de drogas em Campinas e acabei selecionando esses dois locais porque eles falavam de diferentes interações entre os usuários de crack e a cidade, conta a antropóloga.

Interação conflituosa
No caso da Vila Industrial, a autora conta que analisou um prédio ocupado por usuários e foi alvo de uma operação. Já no caso da linha de trem do Paranapanema, Taniele analisou a interação conflituosa entre usuários de crack e participantes do tráfico de drogas. “Com isso, mostrei dois cenários muito diferentes de consumo de crack e abordei a a heterogeneidade dessas cenas de uso”, diz.

A autora resaltou que não pretende propor uma “solução mágica” para o problema do crack. “Há apenas um pedido de pausa para que se conheça os cenários de uso de crack. Eu quis mostrar a dificuldade dos usuários de existir enquanto tantos querem ou reprimi-los ou salvá-los a todos custo”, afirma a antropóloga.

Confira aqui a matéria publicada no G1 Campinas

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Nas tramas do crack – Portal Setor3 / Senac, 8 de abril de 2015

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Publicação reflete cadeia de produção e diferentes atores envolvidos no consumo de crack

“Creio que as ações estatais, ou não estatais, voltadas à assistência social são extremamente importantes para a afirmação de direitos desses usuários. Assistência social é direito. Saúde é direito. Moradia é direito. Trabalho é direito. E os usuários de crack têm direito a ter direitos”, defende Taniele Rui, antropóloga e autora do livro Nas tramas do crack – etnografia da abjeção, pela Editora Terceiro Nome.

A autora desenvolveu uma pesquisa nos últimos anos, especialmente entre 2008 e 2011, para entender o atendimento nos programas de redução de danos em três cenários: a linha de trem do Parapanema e o prédio da Vila Industrial, de Campinas (SP), e a cracolândia paulistana, no entorno do bairro da Luz.

Para inspirar sua produção, a autora seguiu o conceito de Michel Foucault sobre livro: “Ele diz que um livro é um pequeno objeto manejável, que só se faz em relação as coisas sobre ele ditas e aos eventos dos quais ele é sempre prisioneiro”.

A pesquisadora explica que o livro retrata dois aspectos: o fechamento de um ciclo de oito anos de estudo e reflexão que captou o início da fala pública sobre crack no Brasil e o que ele é a partir do que falam dele. Áté agora, a antropóloga está recebendo uma repercussão positiva com essa produção.

A jovem pesquisadora entrou em contato com as histórias dos usuários da droga, especialmente no bairro de São Mateus, na zona leste de São Paulo, em meados dos anos 1990. Com o aumento dos casos de violência, houve uma migração dos usuários da periferia para o centro de São Paulo, se transformando em um espaço de refúgio.

Para isso, a jovem passou por mais de três anos observando as relações nos locais de consumo e as interações entre os traficantes, a polícia, os comerciantes, os transeuntes, os profissionais da saúde e os agentes das políticas de redução de danos nesses espaços já citados.

De forma detalhada de cada passo de sua pesquisa, a obra também traz as dinâmicas dos consumidores de todas as classes sociais e faixas etárias, os meios de obtenção da substância e suas técnicas de utilização. Em relação aos dependentes do crack, classificados como noias, a antropóloga mostra ainda a falha social de todas as políticas sociais e a legislação sobre drogas relacionadas com esse público.

Para Taniele, sua publicação visa observar o consumo de crack de uma maneira que não evoca sua negatividade, mas sua produção. “O que de novo surgiu com o aumento da fala pública sobre a droga no Brasil. Nesse sentido, tento captar tanto as políticas públicas daí advindas (e principalmente, o confronto entre elas), quanto as territorialidades urbanas produzidas, pejorativamente chamadas de cracolândias, mas que revelam uma complexa injunção entre consumo de drogas e cidade”, afirma.  Dessa forma, ela pretende contribuir com as discussões de antropologia urbana, com os operadores e os atores de políticas, com o público interessado pelo tema e aos próprios usuários de drogas.

Sua publicação foi reconhecida com o prêmio Capes de Melhor Tese de 2013. Taniele é doutora pela Universidade Estadual de Campinas. Entre 2013 e 2014, realizou pós-doutorado financiado pelo Social Science Research Council (Estados Unidos), pelo programa de bolsas Drugs, Security and Democracy. Hoje faz pós-doutorado junto ao Núcleo de Etnografias Urbanas do Cebrap e estudo o consumo de crack no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

Para observar o movimento do comércio do crack e as pessoas que usam essa droga em situação de consumo extremo, a pesquisadora acompanhou o programa de redução de danos na cidade de Campinas e na capital de São Paulo. Lá acompanhou histórias de vidas, diferentes trajetórias de uso de drogas e ficou interessada pelos cachimbos que são utilizados nesse consumo. “Mais do que simples utensílios, os cachimbos são mediadores de relações e assuntos recorrente entre eles”, narra a autora no prefácio A Trama Social do Crack.

Com diferentes nomes, como “Boris”, “Perninha”, o cachimbo também foi um objeto bem estudado por Taniele, que ganhava significados diferentes a partir de transações, atribuições e motivações humanas.  “Os cachimbos elucidam o contexto social onde circulam e ganham proeminência em relação às outras coisas que fazem parte da experiência cotidiana dos usuários de crack”.

Além das histórias de vida dos usuários, a pesquisadora também conseguiu levantar matérias e notícias sobre o assunto na imprensa. Na introdução, ela traz ainda algumas histórias de notícias sobre a realidade de alguns que consomem.

Quando questionado sobre o que constatou e não imaginava, Taniele compartilhou que foi perceber o quanto a existência dessas pessoas é naturalizada como desprezível. “O modo como os jornais tratavam do assunto ao longo dos anos 2008 e 2009 era algo extremamente aviltante. Eu me perguntava a todo tempo: ‘como é que se pode falar assim de seres humanos?. Felizmente hoje percebo que há mudanças discursivas importantes”.

A publicação é dividida em três partes, com seis subdivisões em seis capítulos, além da introdução e das considerações finais. A primeira parte é formada por dois capítulos, Os Contornos da Etnografia e Questão de Saúde Pública, em que contextualiza a entrada da autora nesse tema e nas políticas de redução de danos.

O primeiro capítulo abrange a trajetória de pesquisa de Taniele até chegar aos programas de redução de danos das cidades de Campinas e São Paulo, além de mostrar as possibilidades e os impasses da entrada institucional e as consequentes implicações no modo como foi percebida pelos usuários de crack. A antropóloga também traz um histórico das ações de redução dos danos (sua ligação com a política de enfrentamento à Aids no começo dos anos 1990) e suas transformações. Também mostrou que com aumento do consumo e do discurso público sobre o crack influenciou nas recentes políticas de saúde pública específicas sobre drogas no país.

Já na segunda parte também é formada por dois capítulos: A famosa boca de Paranapanema e “Cimento não cura crack’: enfrentando urbanos. Aqui narra espaços de uso visitados e algumas das fronteiras físicas e simbólicas que eles denotam. Para isso, ela traz três cenários específicos: a linha de Paranapanema, o prédio da Vila Industrial e o espaço público da “cracolândia”. Apesar de fluxos semelhantes, esses espaços possuem interações e dinâmicas próprias. A linha de Paranapanema permite observar a relação entre usuários de crack e traficantes. Já o prédio da Vila Industrial mostra a relação entre esses usuários, os moradores do bairro, o projeto-modelo da gestão municipal e uma operação policial que desocupou. Esses espaços também trazem tensões nas relações entre os usuários, traficantes, jornalistas, pesquisadores, policiais, instituições religiosas e assistenciais e serviços médicos. Também nota-se interesses políticos e imobiliários.

A terceira parte é constituída pelos seguintes capítulos: Alteridades corporais e Não é (só) um cachimbo. Com observações etnográficas, os usuários refletem sobre o próprio corpo e indicam vários empregos do termo noia. Há diferentes combinações das inscrições corporais, que afastam ou aproximam os sujeitos da (auto)rotulação de noia. Mostra ainda a dificuldade de sustentar a corporalidade fora dos espaços de uso, bem como as ambiguidades e as confusões dessa aparição. A pesquisadora acompanhou o uso do cachimbo, que é objeto mediador do consumo de crack. Para ela, as pessoas se tornam parecidas com o objeto, com o passar do tempo de consumo, demarcando distintos usos e passam a ser objetos de políticas de saúde pública e da repressão policial.

O leitor vai perceber no detalhamento das ações e das práticas pesquisadas um alto envolvimento da antropóloga. Antes desse trabalho, a autora comentou que já tinha feito uma pesquisa anteriormente com crianças e adolescentes em situação de rua e no interior de comunidades terapêuticas. Ela acredita que essa experiência foi fundamental para ganhar uma certa habilidade pessoal de transitar por esses espaços e uma experiência profissional de acúmulo bibliográfico aliado à percepção das práticas das transformações pelas quais a questão da rua e do consumo de drogas no país passou.

A pesquisadora observou que há muitos profissionais de ponta trabalhando no dia a dia para o bem-estar dos usuários de crack e os tratam com muito respeito e dignidade. Ela pontuou ainda que esses profissionais são às vezes desconsiderados pelos gestores públicos, mas, em sua opinião, são os que de fato conseguem algum vínculo com essa população. “Seria bom, na verdade, que a polícia militar, a polícia civil, a guarda civil metropolitana e IOPE estivessem mais ausentes do cotidiano dessa população. Certamente atrapalhariam menos o trabalho desses profissionais da ponta”.

Confira aqui a matéria no Portal Setor3

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Nas tramas do crack – Rádio Cultura FM (De volta ‘pra’ casa), 31 de março de 2015

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Nas Tramas do Crack, livro de Taniele Rui, pretende mostrar diversidade

A autora e professora da Escola de Sociologia e Política da USP relata no De Volta ‘Pra’ Casa como foi o processo empírico para produção

Idealizado em 2002, com trabalho de campo iniciado em 2008, o livro Nas Tramas do crack – Etnografia da Abjeção  mostra a relação com o espaço, na Cracolândia e na Linha de Trem. Taniele Rui, autora e professora da Escola de Sociologia e Política da USP revela ao De Volta ‘Pra’ Casa o que viu nos locais para elaboração do trabalho.

“Eu queria entender essa realidade que, às vezes de fora, sabemos que existem situações complicadíssimas, mas queria ver de perto como era a vida e a relação dessas pessoas, como era o mundo delas. Relações entre elas e assistentes sociais, psicólogos e todos os serviços que  às afetam. Antes de fazer essa pesquisa eu trabalhei como educadora de rua, isso desde 2002, sempre tive trabalhos de ir pra cidade, trabalhar com crianças e adolescentes em situação de rua. Depois fui fazendo disso meus interesses de pesquisa”, conta Taniele Rui.

Ouça aqui a entrevista na íntegra

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Nas tramas do crack – É de Lei, 26 de novembro de 2014

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Antropóloga Taniele Rui analisa as políticas de drogas na favela da Maré, no Rio, e na Cracolândia, em São Paulo

O É de Lei estreia seu novo portal com esta entrevista com Taniele Rui, antropóloga, mestre (2007) e doutora (2012) pela Unicamp, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política, e pós-doutoranda no CEBRAP, no Núcleo de Etnografias Urbanas.

Em 2013, Taniele ganhou o prêmio Capes de Melhor Tese de Doutorado 2013, e a pesquisa virou livro, “Nas tramas do crack: Etnografia da abjeção”, que foi lançado este ano pela Editora Terceiro Nome.

Atualmente, ela estuda as cenas de consumo de crack na Cracolândia, em São Paulo, e na favela da Maré, no Rio de Janeiro. Nessa entrevista, conversamos sobre alguns paradoxos das políticas públicas voltadas às populações em situação de rua e usuária de drogas.

Taniele observa um “confronto de expectativas” entre o usuário e os serviços do Estado, onde serviços de assistência e saúde se misturam a serviços de disciplina e ordem.  De um lado, a dinâmica da vida dos usuários é determinada pela dinâmica dos horários e regras dos sistemas de atendimento, seja nos albergues, nos restaurantes populares, nos CAPS ou nos centros de convivência. De outro, o Estado espera que deixem as ruas.

PERGUNTA: Vemos que é muito comum hoje – talvez por causa do crescimento da importância dos Direitos Humanos, talvez por causa do contexto democrático, talvez devido às lutas – existir algum atendimento à população em situação de rua e usuária de drogas. É algo que até me surpreendeu pessoalmente quando vim trabalhar no É de Lei: sim, há políticas públicas. São sempre passiveis de crítica, mas tem. Só que a relação entre os usuários e esse atendimento parece ser sempre problemática. No seu trabalho, você está comparando dois cenários – o da Favela da Maré e o da Cracolândia – observando justamente a relação entre os usuários e as políticas desenvolvidas. Pode descrever um pouco esses ambientes? 

TANIELE RUI: Isso que você está falando é bem importante. Isso vai contra essas teses de ausência do Estado. O que vemos empiricamente é que tem Estado, e às vezes tem até bastante Estado. […] Então a pergunta é: se tem Estado, porque que esse Estado não se reverte em garantia de direitos? Que presença é essa do Estado? […]

Essa gestão estatal é feita da seguinte forma: em primeiro lugar, o Estado tem que gerenciar o espaço. Então combinam políticas de assistência/saúde de um lado com  políticas de contenção/repressão de outro. Sempre nesses cenários tem policia militar junto com profissionais da assistência, profissionais da saúde, ONGs e uma série de outras instituições que vão brotando.

O caso da Maré é um pouco diferente. Ela está no meio de uma confusão que é o próprio Complexo da Maré, que tem três facções, tem milícia e essa constituição da UPP (Unidade de Policia Pacificadora), que tem Exército, forças de pacificação. É um cenário diferente do de São Paulo.

Em São Paulo, tem essa diferença oposição/situação (entre Estado e Prefeitura), mas na prática os serviços trabalham juntos. […] Por exemplo, entre o [projeto] Recomeço (Estado) e o Braços Abertos (Prefeitura), você vê profissionais do Recomeço na tenda e do Braços Abertos no Recomeço. Quer dizer, no plano macro eles estão em uma Dinâmica de oposição, mas no trabalho local há cooperação.

PERGUNTA: De fato, se você olhar o cenário da Cracolândia, vamos ver isso, o Braços Abertos, o Recomeço, o Complexo Prates, o Cratod… No caso da Favela da Maré, é parecido o contexto? Tem instituições semelhantes?

TANIELE RUI: Na favela da Maré, tem uma coisa que me inquietou: como os usuários provocam a ida dos serviços. Primeiro que eles já foram para a Maré porque eles estavam sendo deslocados de Manguinhos e Jacarezinho porque teve a [implementação da] UPP. Eles cruzaram a Avenida Brasil e entraram para a favela da Maré. Desde Novembro eu to lá. Esse ano, surgiram dois serviços. Um chama Proximidade, da Assistência Social da Prefeitura do Rio. E na esquina seguinte surgiu um CAPS-AD. Os dois, em parceria com os consultórios de rua. Então a própria constituição de uma cena de uso provoca e produz o serviço. Esse programa Proximidade está dentro de um CRAS, então é tudo da Assistência Social. Tem o restaurante de um Real – que eles chamam de “garotinho” porque foi criado durante o governo Garotinho. Então tem Proximidade, o Consultório de Rua, restaurante de um real e CAPS-AD.

Não tem um albergue direcionado. Só que essa cena de uso carioca é muito interessante porque ela é, assim, barraco. os usuários vivem em barracos. eles vivem em barracos. é uma extensão da própria favela, onde eles estão nas próprias casas. É um fenômeno muito mais territorializado do que no centro (de São Paulo).

PERGUNTA: Você disse que a cena de uso na Maré teve a sua raiz na implantação da UPP de Manguinhos, é isso? 

TANIELE RUI: Na verdade, sim, o grande fluxo.  Tinha alguns usuários de crack ali, mas eles se tornaram em maior número depois a intervenção e a implantação da UPP de Manguinhos e Jacarezinho.

Agora que a UPP já se colocou, já tá tendo problemas, já tá tendo usuário voltando, outros ficando na Maré…. Enfim, acho que faz parte das dinâmicas itinerantes dessa cena.

PERGUNTA: Onde tem mais Estado, Cracolândia ou Maré? 

TANIELE RUI: Ali é uma cena que tá dentro de um bairro. Então tem outras lógicas de ordenação operando. Não que a Cracolândia não esteja dentro de uma comunidade. Ela está, mas o centro de São Paulo, os centros das grandes cidades, provocam outras dinâmicas do que uma área de favela. Então nessa área, da Maré, os usuários tem uma relação com a associação de moradores, com o tráfico de drogas local, que de alguma maneira vai gerenciar aquele ordenamento, até onde eles podem ir até onde não podem. Eles tão mais fixos (do que na Cracolândia). Eles não podem caminhar por todo o bairro. Então tem dinâmicas de bairro mesmo. E são em número menor. Não chega a ser o que é São Paulo.

PERGUNTA: No seu trabalho, você usa a expressão “confronto entre usuários de crack e órgãos assistenciais, sanitários e repressivos”. Supostamente os serviços estão lá para ajudar o usuário. Que confronto é esse?

TANIELE RUI: É um confronto de expectativas. O serviço quer dar banho e o cara não quer porque mais sujo ele ganha mais dinheiro, por exemplo. É desde esses confrontos mínimos até o cara não quer sair de lá e o serviço quer que ele vá para um albergue. Não tem consenso. É sempre uma disputa entre projetos de vida.

PERGUNTA:  Parte das políticas voltam-se à Saúde e ao cuidado em geral e outras concomitantes visam a disciplina e fatalmente podem ter um caráter higienista. Como é isso do ponto de vista deles? – você disse que está estudando do ponto de vista deles…

TANIELE RUI: A questão é assim: que uso as pessoas fazem desses serviços? Que uso fazem do Recomeço? Que uso fazem do Braços Abertos? Que uso fazem do CRAS? […] Por exemplo, o cara da um tempo no CAPS-AD, depois vai comer no um real, se tiver muito louca a vida, vai dormir uns dias numa clínica… Do ponto de vista das pessoas, é assim que elas fazem arranjos. É claro que a gente não vai lutar por isso porque o nosso papel, enquanto defensor de direitos, tem a ver com lutar pela realização dos direitos. Mas eles fazem os arranjos deles.

PERGUNTA: Outro dia fizemos um vídeo com os conviventes do É de Lei e perguntamos “o que é morar na rua?”. E um deles falou assim: ah, é você deixar o Estado manipular você. O que você acha disso? 

TANIELE RUI: Ele entendeu que tem Estado pra @#-$%@ ali né? Que a vida dele tá sujeita a uma série de desmazelos governamentais. Acho que ele entendeu muito bem. Morar na rua é isso: você tem que saber onde estão os serviços. Aí você vai organizando a sua vida de acordo com os serviços. Então acorda num lugar vai em outro para almoçar, outro para passar a manhã, outro para passar a tarde, outro para voltar para dormir. Então você vai entendendo como é a lógica governamental e vai se movimentando em torno disso. Achei de uma sagacidade impressionante [a resposta do convivente]. Ele percebeu que aquilo que é escolha tem a ver com como se movimentar entre os serviços governamentais.

E não a toa os centros das cidades tem mais pessoas em situação de rua porque é onde se concentram mais os serviços para essa população. Então o caso da Maré me interessou por isso. Se não é no centro, como é que elas dão conta de viver numa favela, numa comunidade, e quais recursos elas tem que acionar, se não é só o Estado? Então você vê que tem uma rede de relações, de etiqueta, com os vizinhos, com o bairro. Eles não caminham por todo o bairro. É muito interessante isso. A gente vai debater hoje um texto (na aula) e a autora fala isso. Estar na rua é saber se relacionar com a cidade, saber ler a cidade. Imaginar o que a cidade quer de você e aí você vai se movimentando de acordo com isso.

PERGUNTA: Estamos chegando ao final da entrevista e vou te fazer uma pergunta que pode parecer um tanto cínica, mas não vejo forma mais direta de fazer: em que concretamente contribuem essas políticas públicas voltadas para a população em situação de rua?Que resultados elas produzem na cidade e na vida dos envolvidos? 

TANIELE RUI: Bom, claro que eu tenho que te falar que é melhor tê-las do que não tê-las. É melhor ter um albergue do que não ter. É melhor ter um centro de acolhida do que não ter. Agora, se esses serviços conferem autonomia, se conferem que os moradores de rua sejam alçados à condição de sujeitos de direitos – e não só alguém que recebe benesses do Estado, são discussões que a gente precisa fazer urgentemente. Agora, em que elas contribuem a gente tem que perguntar para eles.

PERGUNTA: Você já perguntou isso?

TANIELE RUI: Já. Eu voltei para a [pesquisa na] Cracolânda e tenho perguntado para eles sobre o Braços Abertos. Eles falam duas coisas que eu acho bem significativa. Eles dizem que ajuda a dar um tempo da vida loka, tem um lugar para dar um tempo, pra ficar, e melhora a relação com a política. Acho genial. Eles tão dizendo isso, que uma coisa urgente da rua é a situação com a polícia,. O cara não ficar sendo obrigado toda hora a circular porque não pode parar em lugar nenhum, porque está ferindo a ordem pública. Talvez isso não era o que tava sendo esperado pela política, mas para eles é muita coisa.

PERGUNTA: Enquanto antropóloga, o que acha disso? O que funciona e o que tem que mudar nessas políticas públicas? 

TANIELE RUI: Acho o seguinte. Tem as mais violadoras de direito e tem as mais promotoras de direito. Então, primeiramente, eu acho que as políticas tem que promover direitos. Não achar que eles estão dados, mas tem que continuamente trabalhar para promovê-los. Pensar em coisas mínimas mesmo. Como ter acesso a casa, trabalho. Isso se a pessoa quiser.

Algumas eu acho que tem que aprimorar, escutar mais… E uma coisa que eu tenho observado: os profissionais mais capacitados tem sido deixados de lado no jogo político. É fundamental haver esses mediadores no jogo. Eu acho que eles fazem a ponte com os direitos. […]alguns estão sendo deixados de lado. Por exemplo, a coisa que aconteceu no Prates. Tirar os profissionais mais capacitados sob o argumento de que eles tutelam. Eu vi por exemplo aquela entrevista do Haddad com o Bruno Torturra. A fala dele foi muito sorrateira. Ele disse como se até então tudo que havia era a repressão de um lado e, de outro, que os profissionais que atuam próximos estavam agindo com tutela. Então o que ele fez, encurtou o caminho da repressão de um lado e dos mediadores de outro e foi direto conversar com os usuário. Eu acho que tirar essa mediação tem riscos políticos. A conquista ou a promoção de direitos envolve você ouvir muitos atores. Quando você tira de cena justamente aqueles que estão mais preocupados em promover isso tem que ser visto com muita cautela. Esses profissionais estão lá há dez quinze anos. Não dá para tirá-los de cena.

Veja aqui a entrevista no site original

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Nas tramas do crack – Portal Setor3 / Senac, 20 de março de 2015

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Antropóloga lança livro sobre pluralidade de relações envolvidas no consumo de crack em São Paulo

“Ela conseguiu dar uma abordagem amorosa com uma população que passa pelas piores situações de ódios e ressentimentos”, afirmou a repórter do coletivo PONTE de Jornalismo, Laura Capriglione, durante debate e lançamento do livro Nas Tramas do Crack, da Editora Terceiro Nome, no auditório da Ação Educativa, no centro de São Paulo, ontem à noite (19 de março).

Para explicar sua pesquisa e o tema, foram convidados para essa conversa: Bruno Ramos Gomes, presidente da ONG É de Lei, e Taniele Rui, antropóloga e autora de Nas Tramas do Crack.

Resultado da sua tese de doutorado, a pesquisadora contou que a publicação inclui seu trabalho como educadora popular nos últimos anos, em especial de 2008 a 2011, ao atendimento nos programas de redução de danos em três cenários: a linha de trem do Parapanema e o prédio da Vila Industrial, de Campinas (SP), e a cracolândia paulistana, no entorno do bairro da Luz.

Reconhecido com o prêmio Capes de Melhor Tese de 2013, a obra de Taniele envolveu dois anos e meio de pesquisa de campo. A jovem antropóloga entrou em contato com as histórias dos usuários da droga que chegou ao Brasil, especialmente no bairro de São Mateus, na zona leste de São Paulo, em meados dos anos 1990. Com aumento dos casos de violência, houve uma migração dos usuários da periferia para o centro de São Paulo, se transformando em um espaço de refúgio.

A obra também traz as dinâmicas dos consumidores de todas as classes sociais e faixas etárias, os meios de obtenção da substância e suas técnicas de utilização. Em relação aos dependentes do crack, classificados como noias, a antropóloga mostra a falha social de todas as políticas sociais e legislação sobre drogas relacionadas com esse público.

A pesquisadora é doutora pela Universidade Estadual de Campinas. Entre 2013 e 2014, realizou pós-doutorado financiado pelo Social Science Research Council (Estados Unidos), pelo programa de bolsas Drugs, Security and Democracy. Hoje faz pós-doutorado junto ao Núcleo de Etnografias Urbanas do Cebrap e estudo o consumo de crack no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

A repórter Laura comentou sobre sua experiência na cobertura da operação dor e sofrimento na região central conhecida como cracolândia para o veículo jornal Folha de S. Paulo. Também acompanhou a produção da matéria na Veja feita pelo jornalista Elio Gaspari e observou a linguagem adotada pela grande imprensa para abordar essa pauta. “Acompanhei o dia a dia dessas pessoas. Durante a operação, não podiam dormir, nem sentar nas ruas. Queriam expulsá-los do centro”, contou a repórter. Observando a postura da polícia com os dependentes de crack, Laura comentou que conheceu um pouco mais daquela realidade. “Há uma gama de preconceitos envolvidos nessa trama”.

Já Bruno, coordenador do Núcleo de Ensino e Pesquisa da ONG É de Lei, ressaltou a importância da publicação pela relevância do tema e a complexidade das relações dos atores envolvidos. “Ela conseguiu mostrar toda a polêmica da dependência do crack e quantas pessoas estão envolvidas nisso, além das dinâmicas e sentidos”, contou.

A pesquisadora contextualizou sua atuação na área social e a escolha do tema. Começou sua fala explicando que para ela era um livro, seguindo uma visão de Foucalt em seu segundo prefácio de um livro sobre loucura (História da Loucura, de Michel Foucalt). “Ele fala que um livro é um pequeno objeto manejável para fazer coisas a ser ditas por ele”, resumiu a antropóloga em que contextualizou sua experiência profissional em pesquisa com pessoas em situação de rua, consumo de drogas e espaços de internação.

Taniele falou ainda que acompanhou bem de perto nos anos de 2007, 2008 e 2009 a população usuária de crack para retratar em sua pesquisa de doutorado. Em sua opinião, a pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre o perfil de consumo de crack no Brasil ajudou a mais pessoas olharem sobre essa questão, acompanhada com o aumento de notícias e reportagens dos veículos da imprensa sobre essa questão.

Para ela, um dos principais desafios foi unir suas experiências práticas com a teoria para analisar as cenas de consumo do crack e os programas de prevenção. “Ainda sou incapaz de entender tantos atores sociais diferentes, suas relações e como isso acontece”, disse.

Veja aqui a matéria na íntegra

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