O Capa-Branca – Saúde!Brasileiros (Ideias e Provocações), 17 de setembro de 2015

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O manicômio manda lembranças

Com Walter Farias, ex-funcionário que virou paciente, o jornalista Daniel Navarro Sonim escreveu um relato contundente sobre o Hospital Psiquiátrico Juquery, em São Paulo. Neste artigo, ele mostra como a falta de conhecimento das atrocidades ali praticadas ainda nutre o preconceito

O morador de rua Francisco Erasmo Rodrigues de Lima foi assassinado enquanto tentava libertar uma refém de seu sequestrador, também morto durante um tiroteio na Praça da Sé, em São Paulo, em 4 de setembro de 2015.  Nas redes sociais, um comentário chamou a minha atenção: “Era só mais um mendigo. Pelo menos, limparam as ruas!”

Essa abordagem higienista, ainda recorrente no País, é uma herança do século 19. Na época, a população da capital paulista aumentava vertiginosamente com o desenvolvimento da indústria e a chegada dos imigrantes. E assim a paisagem urbana passava a integrar também desempregados, mendigos, prostitutas, sifilíticos, alcoólatras, ex-escravos, pessoas com deficiência física e doentes mentais.

Preocupada em evitar a degradação moral e a disseminação do que considerava “doenças sociais”, burguesia e ciência idealizaram um local distante da capital para receber essa massa de excluídos tida como improdutiva. Em 18 de maio de 1898, o psiquiatra Francisco Franco da Rocha inaugurava o Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo, com 800 leitos.

No início dos anos 1970, o Juquery abrigava quase o dobro das 9.000 pessoas que tinha condição de comportar. O livro O Capa-Branca (Ed. Terceiro Nome, 2014), que escrevi a quatro mãos com Walter Farias, ex-atendente de enfermagem que se tornou paciente do Juquery, resgata as memórias do lugar, que foi um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil.

Walter testemunhou a chegada de indivíduos que perdiam a identidade e o pouco que lhes restava de dignidade. Com a cabeça raspada, dentes arrancados e vestidos com o uniforme de paciente (calça azul, camisa de algodão cru e um casaco preto de pano grosso), perambulavam pelos pátios das clínicas em meio à massa de pacientes nus ou em farrapos.

Além da medicação pesada, os pacientes eram amarrados em camisas de força, submetidos a banhos gelados e passavam pelas temidas sessões de eletrochoque.  Os tratamentos para a loucura que, hoje se sabe, serviam apenas para coagir e torturar os pacientes, ainda incluíam injeções do parasita da malária, aplicação de altas doses de insulina para provocar o coma e a lobotomia, que retirava pedaços do cérebro.

Depois de sua transferência para o Manicômio Judiciário, Walter passou a conviver com pacientes que cometeram crimes e, com a sanidade abalada, acabaram internados.

Ele  conseguiu sobreviver às internações, ainda toma medicamentos e leva uma vida relativamente normal. Juntos, temos dado palestras sobre o que ele testemunhou e rememora no livro. Mas muitos pacientes morreram abandonados. Tinham como destino covas sem identificação no cemitério do próprio Juquery. A sogra dele, Ana Luiza da Silva, provavelmente se juntou a esses mortos. Depois de algumas poucas visitas, ninguém mais a viu e não se sabe do paradeiro dela.

A busca pelas memórias de Ana Luiza e de tantos outros pacientes se inviabilizou em 2005, quando um incêndio atingiu o setor administrativo do Juquery. O fogo destruiu o prédio tombado como patrimônio histórico, sua biblioteca e os registros de internação. Cada memória consumida pelo fogo representa um apelo para que o mundo se torne um lugar menos intolerante.

Atualmente, 151 pacientes ainda vivem no Juquery, que passa por um processo de desativação que já dura uma década. Segundo a Secretaria de Saúde de São Paulo, essas pessoas estão “internadas há mais de 30 anos e não possuem retaguarda para reinserção social, devido à ausência dos familiares”.

Vários pacientes do Juquery e de outros hospitais psiquiátricos espalhados pelo País já foram transferidos para residenciais terapêuticos. No entanto, ainda não há políticas eficientes para cumprir as diretrizes da Reforma Antimanicomial (Lei 10.216/01), que propõe a reformulação do modelo assistencial em saúde mental e a consequente reorganização dos serviços, priorizando o atendimento extra-hospitalar e as equipes multiprofissionais.

Trabalhadores da área da saúde — como enfermeiros, médicos, psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais, estão comprometidos com essa causa. Mas não bastam as leis e a boa vontade desses profissionais.

O manicômio, infelizmente, é visto como uma realidade por muita gente que não sabe a história das  instituições psiquiátricas ou não teve pessoas próximas internadas. Isso fortalece ainda mais a necessidade de que os fatos ocorridos ali e em outros manicômios sejam cada vez mais conhecidos e que a discussão sobre a inserção do doente mental na sociedade seja amplificada. Internar a força ou eliminar quem desestabiliza o bem-estar social e degrada a paisagem urbana parece ser, ainda, mais simples do que compreender a individualidade e a pluralidade de cada sujeito.

Os ensinamentos da memória

A documentação que conta a história das atrocidades praticadas contra os pacientes psiquiátricos no Brasil precisa ser reunida, preservada e conhecida. Mas pouco tem sido feito.

Uma sociedade sem memória é como uma viagem sem mapa. É muito fácil se perder. Infelizmente, temos feito pouco nessa área. Com o incêndio do Juquery, em 2005, muito se perdeu. O que sobrou dos registros de pacientes atualmente está guardado no Museu Osório César, em Franco da Rocha.  Fechado desde 2006 e atualmente em reforma para modernização, lá se encontram obras de arte dos pacientes do velho hospital e a carta escrita por Freud ao médico Osório César, que por muito tempo trabalhou lá.

Outro centro de preservação é o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro. Criado em 1952 pela psiquiatra Nise da Silveira, reúne obras dos pacientes do serviço de terapia ocupacional implantado pela médica no Centro Psiquiátrico Pedro II em oposição aos tratamentos praticados em 1940, como a lobotomia e a insulinoterapia. E há também alguns poucos livros, entre os quais se insere O Capa-Branca, que escrevi a quatro mãos com Walter Farias, ex-atendente de enfermagem que se tornou paciente do Juquery e que expõe as feridas abertas do tratamento dado aos pacientes psiquiátricos. O título agora faz parte dos acervos da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos e da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos.

É o que temos no momento. Mas não podemos perder de vista que um povo sem memória é como uma viagem sem mapa. É muito fácil se perder e cometer os mesmos erros. Por que não aprender com o exemplo dado pelos alemães? A capital cultural Berlim abriga o Memorial do Holocausto. É um lugar magnífico, visitado por milhares de pessoas todos os anos, para ajudar a humanidade a não se esquecer do extermínio de judeus, poloneses, ciganos, eslavos, homossexuais, testemunhas de Jeová, pessoas com deficiência e problemas mentais, maçons, negros ou quaisquer outros antagonistas do nazismo. Uma lógica não muito diferente daquela aplicada na concepção do Juquery.

Confira aqui o artigo publicado originalmente no site da revista Brasileiros

E veja aqui mais informações sobre o livro

 

Vilanova Artigas e A mão livre do vovô – Bonde, 16 de setembro de 2015

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Livros sobre Vilanova Artigas são lançados no Museu de Arte de Londrina

Na próxima quinta-feira (17), às 18 horas, os interessados nos trabalhos de João Batista Vilanova Artigas poderão conferir de perto um pouco mais sobre a vida deste, que é considerado um dos grandes nomes da arquitetura brasileira. Isto porque serão lançados os livros “Vilanova Artigas”, de Rosa Artigas e Marco Artigas, e “A mão livre do vovô”, de Michel Gorski e Sílvia Zatz, na sede do Museu de Arte de Londrina, que fica na Rua Sergipe, 640. O projeto do prédio, inclusive, é de Artigas.

O lançamento das obras literárias faz parte da 17ª edição do Festival Kinoarte de Cinema, realizado em Londrina de 17 a 27 de setembro. O livro de Rosa Artigas tem 271 páginas e aborda a trajetória do arquiteto através da publicação de 43 projetos, realizados por ele, incluindo os não executados feitos para o concurso do Plano Piloto de Brasília e a proposta de reurbanização do Vale de Anhangabaú. A partir de fotografias – atuais e antigas – e desenhos originais feitos à mão por Artigas, o leitor poderá adentrar na trajetória profissional do arquiteto.

Já a obra “A mão livre do vovô” traz páginas soltas com os desenhos feitos por Artigas, em papéis simples usando lápis de cor e canetas. Estes “rascunhos” foram feitos para os netos do artista e, por isso, muitos têm intervenções das crianças. Por serem soltos, eles permitem ao leitor criar uma interação lúdica, em que é possível elaborar sua própria história.

Sobre Artigas

O arquiteto nasceu em Curitiba, deixou cerca de 700 projetos e obras espalhadas por São Paulo e outras cidades. Em Londrina, foi responsável pelo prédio da Casa da Criança, do Teatro Ouro Verde e da Antiga Estação Rodoviária, que hoje recebe o Museu de Arte da cidade. Foi fundador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1948, onde liderou, em 1962, um movimento para a reforma de ensino que influenciou outras faculdades de arquitetura no Brasil. Recebeu dois prêmios internacionais que são o Prêmio Jean Tschumi (1972) e o Prêmio Auguste Perret (1985), este póstumo.

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Após o lançamento dos livros, o Festival Kinoarte de Cinema fará sua sessão de abertura oficial com a apresentação do filme “Villanova Artigas: o arquiteto e a luz”, de Laura Artigas e Pedro Gorski, às 20 horas, no Cinemark Boulevard Londrina Shopping, sala 1.

Confira aqui a matéria publicada originalmente no site Bonde

E veja aqui mais informações sobre o livro Vilanova Artigas e aqui se quer ver mais detalhes sobre o livro A mão livre do vovô

Vilanova Artigas – Arq!Bacana, 21 de agosto de 2015

CAPA - VILANOVA ARTIGAS

VILANOVA ARTIGAS

Publicado pela editora Terceiro Nome, o livro “Vilanova Artigas” oferece algumas pistas para a trajetória deste grande arquiteto, por meio da publicação de 43 projetos, construídos e ainda existentes, e inclui algumas obras inéditas.

Artigas é um homem do “breve século XX”, nasceu durante a Primeira Guerra Mundial e faleceu antes da queda do muro de Berlim. Partindo desta ideia, a historiadora e filha do arquiteto, Rosa Artigas, após cinco anos de pesquisas nos acervos de Vilanova Artigas, resolveu mostrar os projetos do pai sob o viés histórico. Somente os dois planos urbanísticos, o concurso do Plano Piloto de Brasília e a proposta de reurbanização do Vale de Anhangabaú, não foram executados e integram a seleção apresentada.

Os projetos feitos a lápis nos anos de 1940, por exemplo, revelam uma improvável modernidade com sabor artesanal, evidência da contradição entre a ideia, a linguagem e os meios de fazer típicos da modernidade no Brasil. Para sugerir essa leitura e assinalar a apresentação do material histórico, o projeto gráfico tratou os desenhos deixando visíveis as marcas do tempo.

As obras foram organizadas por tipo de programa – casas, apartamentos, escolas, edifícios comerciais e institucionais, conjuntos habitacionais, planos e equipamentos urbanos – dispostas em ordem cronológica dentro de cada tema.

A forma como os projetos estão apresentados possibilita revelar com mais clareza os pontos de inflexão, as continuidades e as retomadas de caminhos a partir da análise de objetos construídos em condições semelhantes quanto a dimensões, ao uso, aos meios técnicos e à relação com o entorno construído, considerados na obra de um único arquiteto.

Nascido em Curitiba e radicado em São Paulo, Vilanova Artigas deixou a sua marca em grandes obras que guardam a memória de sua passagem pela capital paulista. Entre elas, o Edifício Louveira, no bairro de Higienópolis; e o Estádio do São Paulo Futebol Clube no bairro do Morumbi (1952). Ainda se destaca o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

Veja aqui a matéria postada no site Arq!Bacana

E confira aqui mais informações sobre o livro

Antropologia e Performance – Ponto Urbe, 16 | 2015

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Antropologia e Performance: Ensaios Napedra

Rafael da Silva Noleto

Referência(s):

DAWSEY, John; MÜLLER, Regina; HIKIJI, Rose Satiko; MONTEIRO, Mariana F.M. (orgs).Antropologia e Performance: ensaios Napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013, 499pp.

“Antropologia e Performance” é uma coletânea de artigos que pode ser considerada como paradigmática no Brasil, pois coloca em evidência uma corrente teórica da antropologia que vem, paulatinamente, ganhando mais espaço nos debates acadêmicos contemporâneos. A Antropologia da Performance é uma perspectiva, isto é, um modo peculiar de enxergar a vida social como um conjunto de atos performativos que dramatizam, comunicam, reiteram e modificam status sociais. No contexto brasileiro, há que se destacar a atuação significativa do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA/USP), liderado por John Dawsey, no sentido de aquecer as discussões que consideram a vida social como dotada de certa dramaturgia que lhe dá inteligibilidade.

Os três primeiros textos, além de comporem uma espécie de “preâmbulo” do livro, dão o tom teórico da obra. No prefácio, Diana Taylor explora de maneira instigante a polissemia da palavra performance, indicando a abrangência teórica e o grau de intraduzibilidade do termo. Performance é, ao mesmo tempo, lente metodológica, epistemologia, um tipo de prática encorporada, uma linguagem que produz acontecimentos (na perspectiva de Austin e Derrida), práticas regulatórias e citacionais que engendram identidades de gênero e de sexualidade (para Butler) e, claro, uma expressão teatralizada da experiência vivida. No texto de apresentação, intitulado “Tranças” e escrito a oito mãos pelos organizadores da coletânea, há um interessante sobrevoo sobre as contribuições teóricas de Victor Turner e Richard Schechner para a constituição desse campo de pesquisa. A ideia é pensar numa antropologia (a partir do infinity-loop model, idealizado por Schechner com base em suas leituras de Turner) que reflita acerca das interações possíveis entre dramas sociais e dramas estéticos. Ainda nesta introdução do livro, há um texto de Schechner em que o autor revisita um de seus escritos clássicos, intitulado “Pontos de contato entre o pensamento antropológico e teatral” (que é um capítulo de seu livroBetweenTheaterandAnthropology), trabalhando com as seguintes ideias: 1- o conhecimento nativo é uma prática encorporada; 2- as culturas humanas são fundamentalmente performativas; 3- a performance é um comportamento duplamente comportado, ou seja, um comportamento restaurado a partir de uma experiência de vida com um drama social e/ou estético; 4- o cérebro como um local de performance, um elemento corporal que possui plasticidade, passível de receber um treinamento através do qual “os espectadores performam em sua imaginação, juntamente com os performers que observam” (p.59).

Seguindo o fluxo da coletânea, o primeiro conjunto de textos (“Corpo, drama e memória”) é aberto por John Dawsey, que, através do conceito de “montagem” criado pelo cineasta Sergei Eisenstein, empreende uma análise poética que funde as imagens de mães amorosas e mulheres furiosas no contexto de sua pesquisa no Jardim das Flores (periferia de Piracicaba-SP). Neste caso, “montagem” seria um processo em que “a partir da fusão de dois fatores em conflito cria-se uma imagem ou montagem carregada de tensões” (p. 70). Para Dawsey, é interessante trabalhar com a metáfora cinematográfica de “montagem” porque ela possibilita enxergar a complexidade e as tensões dos atores sociais em campo, retirando-lhes de definições sociais estanques e evidenciando que, num mesmo contexto social, um sujeito político pode ter múltiplas e simultâneas faces.

Situado no campo de diálogo entre Etnologia Indígena e Antropologia da Performance, o artigo de Danilo Paiva Ramos apresenta as rodas noturnas dos senhores Hupd’äh da comunidade de /Tąt-Dëh/ no Alto do Rio Negro. De acordo com Ramos, “as rodas noturnas de consumo de coca constituem-se como um espaço central para os fazeres mítico, onírico e xamânico, a partir dos quais os participantes estabelecem relações fundamentais com o restante da sociedade Hup” (p. 85). O autor chama a atenção para uma condensação ritual que é visível em torno da coca, estabelecendo relações entre donos e apanhadores de coca. Essas relações destacam a coca como dádiva, mas também as assimetrias entre os sujeitos (p. 96). “As rodas de coca, ao situarem a relação dono-apanhador, situam uma reflexividade performática de um tipo de relação maestria-domínio” (p. 95).

Emergem do contexto quilombola as reflexões de Rubens Alves da Silva sobre questões de identidade étnico-racial de comunidades tradicionais reconhecidas como remanescentes de quilombos (p.101). O objetivo do autor é produzir um entendimento acerca de como as populações quilombolas mobilizam narrativas escritas, relatos orais e, assim, constroem depoimentos que passam a constar nos Relatórios Técnicos Científicos (RTC) e que têm como intuito a reivindicação de direitos quanto à posse de terras. Para o antropólogo, a população rural do Alto do Vale do Ribeira encontra maneiras criativas e plurais de “restaurar a memória do passado e construir uma imagem positiva de si mesma, buscando afirmar sua identidade como comunidade tradicional remanescente de quilombos, tendo em perspectiva a obtenção do título de propriedade territorial” (p. 113).

Acompanhando devotos de Nossa Senhora Aparecida em romaria, Denise Pimenta engendra uma reflexão sobre os aprendizados dos corpos em contextos de performances religiosas. Nesses contextos, “o corpo é transformado pela fé […] o corpo do romeiro e sua devoção operam no tempo verbal do gerúndio na medida em que estão em constante construção: formando-se, transformando-se, modelando-se” (p.119). Por outro lado, em campo etnográfico completamente distinto, Marcos Vinícius Malheiros Moraes contribui com um artigo em que problematiza a construção performática do ser “aluno” (ligado à “ordem”, à concentração, ao aprendizado formal) e do ser “criança” (vinculada à “desordem”, à brincadeira, ao aprendizado informal) em uma escola de educação infantil. Para o autor, as brincadeiras das crianças no parque da escola trazem à tona, muitas vezes, o uso da mímesis como recurso de aproximação com a vida social que aquelas crianças percebem à sua volta. Neste sentido, as crianças colocam em primeiro plano o caráter fictício da vida social, destacando que ser “aluno”, “criança” ou mesmo um “adulto” é um processo de construção performático constante.

Num ousado texto, RomainBragard explora as fronteiras entre antropologia e psicanálise a partir de sua etnografia em torno do desejo pelo turismo ecológico no Brasil e na França. Para ele, o desejo pela natureza é uma demanda urbana em que os discursos de uma sociedade de consumo produzem demandas por uma natureza “boa”, que multiplique as qualidades morais, práticas, físicas e intelectuais dos sujeitos (p. 148). A partir do diálogo com a psicanálise, Bragard argumenta que todo desejo advém de uma experiência com a sensação de falta, incompletude. Assim, “é no corpo mutilado, humanizado pela falta, que a mitologia turística toca” (p. 156). Por sua vez, Carolina de Camargo Abreu apresenta um texto baseado em seu campo etnográfico das festas rave, que forjam cenários sociais próprios para proporcionar experiências sensoriais diversas aos seus participantes. “A rave, como festa, cria uma ‘instalação’: um lugar absoluto, uma ilha, um universo paralelo” (p. 170).

Já o texto de Adriana Oliveira e Silva conduz os leitores ao Giro da Folia do Divino Espírito Santo em São Luiz do Paraitinga e Lagoinha. A autora trabalha de forma bastante sensível com a noção de dádiva (em que as pessoas oferecem prendas à divindade), revelando as desigualdades sociais que assolam aquelas populações, as hierarquias religiosas entre um catolicismo popular e outro mais institucionalizado, as problemáticas de distribuição de riquezas no contexto rural. “Para os devotos do Divino, dar uma forma concreta, visível e de longa duração para a redistribuição de riqueza, e assim construir uma experiência de igualdade, é nada menos do que imitar a generosidade do Espírito Santo” (p. 195).

Do ponto de vista das discussões teóricas sobre performance, o artigo de Ana Cristina Lopes é bastante provocativo. Com base na autobiografia do V Dalai Lama, Lopes afirma que “existe uma relação direta entre a construção simbólica da imagem pública do V Dalai Lama […] e a criação de rituais e de uma cosmologia do Estado estabelecido por ele no Tibete em 1642” (p.203). Seus dados etnográficos advindos de textos escritos pelo V Dalai Lama instigam a pensar em outras formas de conceber a noção de performance, descolando-a do corpo e percebendo-a como uma construção narrativa capaz de materializar performances corporais e mentais, encenações rituais, objetos artísticos e até mesmo a arquitetura palaciana do Tibete. Para nomear o processo em que uma obra literária autobiográfica é capaz de produzir, indiretamente, todo um aparato performático (ritual e estético) para um Estado específico, a autora lança o conceito de interperformatividade (p. 211).

Giovanni Cirino traz para a coletânea algumas reflexões sobre a Festa de São Benedito, realizada no município de Ilhabela (SP). A festa é dividida em dois grandes eixos estruturantes (a Ucharia e a Congada) que a constituem. Entretanto, as análises de Cirino incidem sobretudo sobre a Congada, o teatro popular por excelência representado nas ruas e que traz para a cena uma desavença entre dois grupos rivais: os Fidalgos do Rei do Congo (cristãos) e os Embaixadores de Luanda (mouros/pagãos). O autor chega à conclusão de que a Congada é resultado de processos de convenção e indexação através dos quais os jesuítas, em suas missões catequéticas pelo Brasil, absorveram elementos simbólicos pertencentes a universos de significação distintos das culturas locais e, assim, constroem um teatro catequético com forte potencial de empatia dentro do contexto intercultural brasileiro. Já o artigo de Celso Vianna Bezerra de Menezes, apresenta algumas práticas de devoção na região do Contestado (SC), decorrentes do período da Guerra do Contestado, em que monges pregadores (mais especificamente o monge São João Maria) recebem atos de devoção por parte de fieis que os veem como profetas ou milagreiros. Em síntese, o autor conclui que a devoção é um conjunto de atos performáticos e comunicativos que opera por meio de mecanismos poéticos e estéticos.

Outro conjunto de textos, intitulado “Filme e Narrativa”, ilumina a obra e dialoga diretamente com um DVD anexado ao livro. Trata-se de textos (livro) e experiências audiovisuais (DVD) que buscam no cinema outras possibilidades teóricas de reflexão. O artigo de Alice Villela é um dos pontos altos da coletânea, estabelecendo uma conexão direta entre experiências xamânicas com o sobrenatural (em que imagens míticas se projetam e se superpõem na mente do xamã) e processos de produção audiovisual (através dos quais se pode superpor imagens que sejam representações muito próximas da experiência xamânica no contexto Asuriní). Por outro lado, Edgar Teodoro da Cunha, em seu trabalho sobre ritos funerários bororo, empreende uma ótima discussão sobre a produção de um documentário sobre práticas rituais em torno da morte nesse contexto étnico específico. O desafio colocado pelo autor diz respeito às possibilidades de mobilização de elementos imagéticos que, colocados em seu filme, fossem diferentemente inteligíveis tanto para nós (em nossa perspectiva ocidentalizada) quantopara os bororo (em sua perspectiva cosmológica indígena).

Francirosy Campos Barbosa Ferreira contribui com um artigo sobre mulheres antropólogas que estudam práticas religiosas, mais especificamente práticas relacionadas ao islã. Para a autora, o aprendizado da religião é performático, perpassa e reconstrói os corpos, imprimindo-lhes marcas de pertencimento ou, pelo menos, de estreita relação com um determinado contexto religioso. No entanto, outro tipo de discussão é empreendido por KelenPessuto. Através da análise de três filmes atribuídos aos diretores MohsenMakmalbaf, Eduardo Coutinho e Luchino Visconti, a autora nos brinda com uma discussão em torno das fronteiras entre realidade e ficção em filmes que utilizam (e às vezes misturam) atores e “não” atores em cena, trazendo para a tela do cinema histórias de vida reais que passam por diferentes processos de transformação em histórias de ficção ou performances cinematográficas construídas com base em algum grau de realidade extraído da biografia dos atores e “não” atores. Diana Paola Gómez Mateus, por sua vez, extrai do cinema colombiano algumas reflexões que a fazem “pensar não só como a nação é elaborada no cinema, mas o tipo de cinema que cria uma nação, assim como as possibilidades de um cinema que teria uma função política de mostrar a violência” (p. 320).

Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz discute sobre a pesquisa etnográfica através da análise da obra de Jean Rouch e de suas próprias experiência/leituras sobre teoria antropológica. Seu texto coloca em pauta o debate acerca de termos como “dramaturgia da vida social”, “etnoficção”, “psicodrama”, “jogo de papéis”, “cinema etnográfico” e “cinema de ficção”. Encerrando esse bloco de textos, o excelente artigo de Rose SatikoGitiranaHikiji e Carolina Caffé propõe uma discussão sobre a construção de uma “antropologia compartilhada” a partir da realização de documentários em que a experiência de fazer filmes é pulverizada para diversos agentes de produção de som e imagem. No caso em questão, os filmes produzidos e analisados pelas autoras tratam de processos criativos e produções artísticas empreendidos no complexo de conjuntos habitacionais conhecido como Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. A discussão gira em torno de como os sujeitos desse lugar periférico da grande metrópole produzem narrativas fílmicas sobre si mesmos.

Quem abre a seção “Antropologia e artes da performance” é o artigo de Regina Polo Müller. A autora visa discutir acerca do corpo como local de incorporação performático. Baseada na teoria de Alfred Gell, Regina Müller constrói a personagem “Chica Chic”, uma incorporação de Carmen Miranda. A personagem é um “índice”, ou seja, uma mediação entre a atriz/antropóloga e a persona pública de Carmen Miranda. Nestes termos, Carmen Miranda se apresenta no corpo de Chica Chic, que não é Carmen, mas é Regina incorporada de uma personagem utilizada para discutir temas diversos que interessam à autora. Estabelecendo uma conexão entre teatro e política, Mariana Monteiro apresenta um texto cujo foco é a encenação do Nego Fugido, que ocorre nas ruas de Acupe (distrito de Santo Amaro da Purificação – BA). Trata-se de uma encenação que produz estados de terror a partir da representação de violentos conflitos escravocratas. Trazidos para encenar o Nego Fugido na periferia de São Paulo, os atores do grupo baiano, através das leituras que as pessoas faziam de sua performance, estabeleceriam conexões inesperadas entre o contexto histórico e político da subalternização dos negros no período da escravidão (fio condutor da encenação) e a situação de exclusão social vivenciada pelas populações mais pobres que povoam as periferias de São Paulo e que empreendem movimentos sociais pela reivindicação de direitos.

Luciana Lyra produziu um texto em que desenvolve o conceito de artetnografia, a partir do qual problematiza a construção de dramaturgias teatrais por meio do cruzamento de experiências entre artistas e uma determinada comunidade cultural, política ou étnica pesquisada. Neste sentido, o trabalho do ator é aproximado, em certa medida, do trabalho do antropólogo, pois “a artetnografia surge, a partir daí, como um processo de dialogia polissêmica, uma troca que pressupõe interculturalidade, onde também o artetnográfo discorre sobre si e sobre sua própria cultura” (p. 404). Os atores se transmutam em seu próprio campo de pesquisa. Ainda no campo do teatro, o texto de Ana GoldensteinCarvalhaes interessa-se pelos “processos criativos contaminados pela antropologia” (p. 411). Neste caso, a autora toma como referência a ideia deWork in Progress de Renato Cohen para a construção de processos reflexivos que visam ampliar processos criativos no contexto teatral. A autora afirma que Cohen trabalha com uma polifonia cênica, que incorpora elementos de diversas linguagens performáticas e possibilita aos atores a construção de performances mais densas e sempre em processo.

Curiosamente, o ótimo texto de Eduardo Nespoli é o único da coletânea que dialoga explicitamente com a música ou com um universo de produção sonora. Os interesses de pesquisa do autor se movem na direção de tentar entender as tensões entre o aparato tecnológico cotidiano de que dispomos e as combinações tecnológicas e artísticas inusitadas que dão a esse aparato uma singularidade funcional no contexto da produção de performances composicionais no campo da música contemporânea. O autor aborda a arte e a tecnologia como fontes produtoras de “engenhocas” e “gambiarras” tecnológicas que se constituem como instrumentos musicais contemporâneos.

O texto de Guillermo Gómez-Peña é um manifesto em defesa da arte da performance. O autor fala de sua experiência como performer e da complexidade de definir esse campo de atuação, pois os performers não são necessariamente atores, poetas, jornalistas, comentaristas, artistas plásticos, designers etc., mas situam-se num entrelugar dessas categorias, ocupam lugares não ocupados, intersticiais. Nessa perspectiva, o performer não está comprometido com a excelência artística, mas com as possibilidades de desencadeamento de reflexões críticas, politicamente engajadas e esteticamente elaboradas acerca de uma vida social, cultural e política circundante.

Finalizando a coletânea, Maria Lúcia Montes se coloca como uma pesquisadora de outro tempo, anterior à disseminação da antropologia da performance como lente metodológica ou viés teórico para análise da vida social. Entretanto, seu texto dispõe-se a criar pontes entre correntes teóricas mais clássicas e esta antropologia centrada na performance, nos dramas sociais e nos dramas estéticos. Compartilhando suas interpretações acerca de um desfile da escola de samba Beija-Flor em 1989 encabeçado pelo carnavalesco Joãosinho Trinta, a autora afirma que as performances são ações simbólicas complexas, capazes de entrelaçar rito, arte e drama social, expressando-se como linguagens sensoriais que reverberam na construção identitária dos sujeitos em diálogo tenso com as estruturas de ordem e poder impostas pela vida social.

“Antropologia e performance” é uma coletânea que possui textos de pesquisadores que estão em diversos estágios de formação ou atuação profissional. Cada artigo traz em si um enorme potencial de discussão teórica, levantando questões muito caras à disciplina. Por conta do curto espaço destinado para produzir uma resenha sobre um livro com um total de 28 textos, creio que muitos temas transversais interessantes que aparecem em cada artigo foram suprimidos aqui, embora sejam tão relevantes quanto às problemáticas centrais abordadas pelos autores. Trata-se de uma obra interdisciplinar, que deve ser lida por antropólogos, artistas e/ou pesquisadores do campo das artes. Os rendimentos de lidar com uma antropologia calcada nas interações entre dramas sociais e dramas estéticos consistem nas possibilidades de enxergar a dimensão poética da vida social, abordando-a de maneira sensível, mas nem por isso distanciando-a de sua carga política.

Confira aqui a resenha publicada no Ponto Urbe

E veja aqui mais informações sobre o livro

A mão livre do vovô – Biblioteca Parque Villa-Lobos, 14 de agosto de 2015

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Confira o vídeo da exposição ‘Vilanova Artigas – A mão livre do vovô’

A Biblioteca Parque Villa-Lobos (BVL) promove a exposição Vilanova Artigas – A mão livre do vovô que celebra o centenário de nascimento do arquiteto, um dos mais importantes do país. A exposição acontece entre os dias 18 de julho e 25 de outubro e tem um recorte diferente: nela serão expostos desenhos que o arquiteto fez para seus netos. A exposição é uma iniciativa da Biblioteca Parque Villa-Lobos em parceria com o Museu da Casa Brasileira (MCB), que também dedica um painel expositivo sobre o arquiteto.

Veja aqui mais informações sobre o livro A mão livre do vovô